Santiago e os tempos da vida
Análise sobre o filme Santiago, de João Moreira Salles
Todos os planos de Santiago têm um só objetivo: encontrar seu diretor. Talvez nesse sentido seja uma obra extremamente egocêntrica, mas não menos reveladora da condição humana. Ao ir atrás de si mesmo, João Moreira Salles nos ajuda a nos analisar também.
João Moreira Salles iniciou sua carreira no audiovisual fundando em 1987, junto com seu irmão mais velho, Walter, a produtora carioca VideoFilmes, inicialmente especializada em documentários para televisão. Salles se destacou internacionalmente com o documentário sobre a guerra entre a polícia e o tráfico de drogas no Rio de Janeiro, Notícias de uma Guerra Particular. O filme, co-dirigido com Kátia Lund, conquistou diversos prêmios e deu maior visibilidade ao cineasta e também ao documentário brasileiro.
O primeiro documentário do cineasta exibido nos cinemas foi Nelson Freire, sobre o pianista brasileiro. Depois deste, veio Entreatos, uma crônica sobre a candidatura vitoriosa de Lula à presidência, lançado simultaneamente com Peões, dirigido por Eduardo Coutinho.
João agora se dedica à edição da revista Piauí e leciona em duas faculdades. Anunciou a feitura de um documentário que também remete a si e que retrata a viagem de sua mãe à China durante a Revolução Cultural.
Um espelho
Santiago é fruto de um filme inacabado sobre o mordomo Santiago Badariotti Merlo que serviu a família Moreira Salles durante toda a infância e adolescência de Salles. O filme-semente foi rodado em 1992, com um Santiago já aposentado e sempre enquadrado em seu pequeno apartamento no Rio de Janeiro. Rodado em preto e branco, com fotografia de Walter Carvalho, o material bruto dialoga o tempo inteiro com a locução gravada pelo, não menos íntimo da situação, irmão de Salles, Fernando. As imagens transbordam uma intimidade que pouco se vê entre um entrevistador e seu entrevistado. Os diálogos diretos entre aquele que vemos e aquele que tenta não se mostrar, é o que há de mais revelador no longa-metragem.
Ao se expor de tal maneira, João coloca em xeque um formato de documentário que ele mesmo já foi partidário. Em suas próprias palavras, ele afirma “não querer seguir pessoas com uma câmera e esperar para ver o que acontece”. Essa decisão está explícita em Santiago, pois a busca não é mais física, mas sim psicológica. Parece que plano a plano vamos conhecendo mais o cineasta e o entrevistado, sempre interligados. Os personagens são colocados frente a frente e se relacionam em uma espécie de jogo de espelhos, sempre refletindo mais sobre o outro do que dele mesmo.
Vidas
Todos enquadramentos lidam com a solidão de Santiago e com a nostalgia, misturado com a possibilidade de sempre querer ter sido mais. A vida dedicada a outras vidas vai ficando cada vez mais melancólica no decorrer do filme. Santiago vai sendo exprimido pelas suas próprias memórias e pelas paredes de seu apartamento; pela sua própria personalidade e pela direção do cineasta. “O tempo não tem consideração”, afirma o personagem. E ele tem razão. O tempo é fator fundamental para o entendimento do longa-metragem. Entender como o diretor lida com o tempo e como ele crê na sua própria evolução como cineasta.
O caráter metalingüístico, inevitavelmente comparado à Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho, gera um filme ainda mais interessante. A afiada crítica com que Salles analisa o material de 92 só enriquece o resultado final. Assistindo o filme-semente, Salles enxerga um peso gigantesco de opressão de sua parte. Fica evidente ao longo do filme, e é ainda verbalizada no final, a relação patrão-empregado mesmo havendo um caráter familiar entre o observador e o observado. João tenta se redimir exprimindo tal situação, no entanto, é importante ler a imagem como uma representação mais generalizada, como algo que ocorre em nossa sociedade. Fala-se sobre como houve uma usurpação por parte do cineasta, um uso do mordomo para falar de si. Entretanto, é inegável que um filme diz muito mais sobre seu realizador do que sobre o assunto ou personagem retratado.
Os planos do corredor da Casa da Gávea (outra personagem de peso no filme) talvez explicitem o vazio no qual João se encontrava no momento da remontagem do documentário. O filme, para ele, é sem dúvida necessário. É um filme analítico que confronta um cineasta com ele mesmo e o seu modo de fazer cinema. Mas não só isso. O filme é sobre a relação humana com a morte, o esquecimento e com as possibilidades de vida, que, pelo menos para Santiago, não tem que ser uma só.
SANTIAGO
Brasil, 1992/2006
Direção e texto: JOÃO MOREIRA SALLES
Diretora assistente: MÁRCIA RAMALHO
Fotografia: WALTER CARVALHO
Montagem: EDUARDO ESCOREL, LÍVIA SERPA
Som direto: JORGE SALDANHA
Narração: FERNANDO MOREIRA SALLES
Produção executiva: MAURICIO ANDRADE RAMOS
Elenco: SANTIAGO BADARIOTTI MERLO, JOÃO MOREIRA SALLES
Duração: 79 minutos